Dever de Cuidar e os Limites do Respeito à Vontade do Paciente
- Dr. Rafael Alvarenga

- 7 de nov.
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O ato de cuidar sempre se equilibra entre dois polos éticos: o respeito à autonomia do paciente e o dever de beneficência do profissional. Quando o doente recusa tratamento para uma enfermidade curável, o dilema se acende em toda sua força filosófica: deve o profissional de saúde intervir contra a vontade do paciente, em nome da vida, ou respeitar uma decisão que parece irracional, ainda que autêntica?

A tradição liberal moderna, desde Immanuel Kant, entende que a dignidade humana está enraizada na autonomia da razão prática. Ser livre é ser capaz de agir segundo leis que a própria razão reconhece como válidas universalmente. Assim, forçar um tratamento seria reduzir o sujeito à condição de meio, violando o princípio moral de respeito à pessoa.
No campo biomédico, esse princípio inspirou a noção de autonomia do paciente, desenvolvida especialmente após o Código de Nuremberg (1947) e consolidada por Beauchamp e Childress em Principles of Biomedical Ethics (1979). Para eles, respeitar a autonomia é reconhecer o direito da pessoa de decidir sobre seu próprio corpo e destino, desde que de modo informado e livre de coerção.
Por outro lado, a medicina herda de Hipócrates e da tradição aristotélica o princípio de beneficência — o dever de agir pelo bem do paciente e evitar o mal.
Quando um paciente decide abandonar cuidados que podem restaurar sua saúde, o médico encontra-se entre dois imperativos éticos: não fazer o mal (non maleficence) e respeitar a liberdade. O conflito entre beneficência e autonomia, como mostram Beauchamp e Childress, não é resolvido por regras fixas, mas por um juízo prudencial (phronesis), herdado da tradição aristotélica.
“A prudência (phronesis) é a virtude que permite deliberar corretamente sobre o que é bom e conveniente para a vida.” - ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco
O respeito à vontade do paciente não pode ser absoluto, pois a liberdade não é apenas formal (o direito de escolher), mas substancial (a capacidade de compreender e avaliar a escolha). Tomás de Aquino, seguindo Aristóteles, distingue a vontade livre do mero impulso: o ato verdadeiramente livre supõe conhecimento e razão.

Assim, se o paciente recusa o tratamento por desconhecimento das consequências, por sofrimento psíquico grave ou por distorção cognitiva, sua decisão carece de plena racionalidade. Nesses casos, o profissional tem dever ético de proteger a vida até que a decisão possa ser revista em condições de liberdade real.
O filósofo Hans Jonas, em Das Prinzip Verantwortung (O Princípio Responsabilidade), adverte que o poder técnico da medicina moderna amplia o dever moral do profissional. O homem não pode limitar-se à ética da intenção; deve responder pelos efeitos futuros de seus atos sobre a vida humana.
Assim, quando a recusa ameaça a própria condição de possibilidade da liberdade — a vida —, a intervenção torna-se ato de responsabilidade. A autonomia é respeitável, mas não absoluta: deve ser equilibrada pela preservação da vida como bem originário.
A filosofia e a bioética convergem, portanto, para uma posição intermediária:
Respeitar a decisão autônoma, quando ela é racional, informada e livre.
Intervir temporariamente, quando a recusa decorre de sofrimento, desinformação ou perturbação da consciência.
O limite ético entre intervir e respeitar não é jurídico, mas ontológico e prudencial: ele se encontra onde a vontade deixa de expressar uma razão lúcida e passa a ser expressão de autonegação.
Como conclui Aristóteles, a virtude está no meio-termo entre o excesso e a falta. O cuidado verdadeiro é o exercício dessa prudência moral — intervir sem violentar, respeitar sem abandonar. A liberdade do paciente é um bem caro na Saúde, sua preservação exige que o profissional seja, ao mesmo tempo, guardião da vida e servidor da razão.
Para conhecer mais:
“Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como um fim, nunca simplesmente como um meio.” — KANT, Immanuel. Grundlegung zur Metaphysik der Sitten [Fundamentação da Metafísica dos Costumes]. Trad. Edson Bini. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 83 (§429).
“Respeitar a autonomia é reconhecer o direito das pessoas de se autogovernarem, de agirem intencionalmente, com compreensão e sem influência controladora.” — BEAUCHAMP, T. L.; CHILDRESS, J. F. Principles of Biomedical Ethics. 9th ed. New York: Oxford University Press, 2019, p. 104.
“Aplicarei os regimes para o bem dos doentes segundo o meu poder e entendimento; nunca para causar dano ou mal a alguém.” — HIPÓCRATES. Juramento. In: HIPÓCRATES. Obras Completas. Trad. Érico Segal. São Paulo: Editora UNESP, 2015, p. 29.
“A vontade é livre porque se funda na razão. Ora, o que é ignorante ou movido pela paixão não age livremente.” — AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, I-II, q. 13, a. 1. Trad. Alexandre Corrêa. São Paulo: Loyola, 2005.
“Age de tal modo que os efeitos de tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma vida humana autêntica na Terra.” — JONAS, Hans. Das Prinzip Verantwortung. Frankfurt am Main: Insel Verlag, 1979, p. 36.








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