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O Dever de Trabalhar: entre o Direito à Assistência e a Responsabilidade Moral

Entre os dilemas mais agudos da vida moderna está a pergunta incômoda: é lícito não querer trabalhar e, ainda assim, exigir proteção da sociedade? A questão ultrapassa o campo econômico e invade o terreno da ética, da filosofia e da teologia. De um lado, há o dever coletivo de amparar os necessitados; de outro, o dever individual de contribuir. O embate entre assistência e mérito, entre caridade e justiça, revela o coração de um problema civilizacional: o que sustenta o pacto moral de uma comunidade?

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Desde os primórdios da tradição judaico-cristã, o trabalho é compreendido não como castigo, mas como participação na ordem divina.No Gênesis (3,19), lê-se: “Com o suor do teu rosto comerás o teu pão”. Essa passagem, longe de ser uma condenação, expressa o sentido da cooperação do homem com Deus na transformação da criação.


Para Santo Agostinho, o trabalho é uma forma de ordenar a alma e evitar a dispersão: “O ócio é inimigo da alma.” (Regula ad servos Dei, c. 4)


E Tomás de Aquino, em sua Suma Teológica (II-II, q. 187, a. 3), reforça que o trabalho é virtude quando orientado ao bem comum e à sustentação de si e dos outros.A preguiça — ou acedia — é, por isso, um pecado capital: ela fere o amor a Deus e ao próximo, pois rompe a comunhão ativa com o mundo.


O pensamento conservador vê o trabalho como fundamento da ordem social. Edmund Burke, em Reflexões sobre a Revolução em França (1790), define a civilização como um pacto entre “os vivos, os mortos e os que ainda nascerão”. Quem se nega a contribuir rompe essa cadeia moral de continuidade.


Para Roger Scruton, o valor do trabalho está em sua dimensão moral e comunitária:

“A dignidade humana floresce quando aceitamos as responsabilidades que decorrem da liberdade.” (How to be a Conservative, 2014)

Nesse sentido, a recusa voluntária ao trabalho é uma forma de ingratidão cívica — a negação do dever de participar da manutenção do bem comum. O conservadorismo defende a assistência social, mas distingue entre ajuda ao necessitado e recompensa ao ocioso. Quando o Estado elimina essa diferença, corrói a base ética da justiça: o mérito é punido e a negligência, premiada.


A doutrina cristã não admite a caridade como cumplicidade com o vício.Na Segunda Carta aos Tessalonicenses (3,10), São Paulo declara:

“Se alguém não quer trabalhar, também não coma.”

A distinção é cristalina: quem não pode trabalhar deve ser amparado; quem não quer, precisa ser corrigido. A caridade autêntica não é mera doação material, mas educação moral. Tomás de Aquino sustenta que a esmola deve visar o bem espiritual do próximo — e o bem espiritual inclui reorientar a vontade.


O serviço social, nessa perspectiva, tem uma função nobre: reabilitar a dignidade de quem caiu. Mas quando se transforma em instrumento de manutenção da ociosidade, perde seu caráter moral e torna-se um simulacro de virtude.


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O Estado de bem-estar social, moldado por ideais igualitaristas, dissolveu a fronteira entre o direito e o dever. O “direito a receber” passou a preceder o “dever de contribuir”.Essa inversão destrói o sentido de reciprocidade social — a base sobre a qual repousa qualquer civilização estável.


Russell Kirk, em The Conservative Mind (1953), alertava que uma sociedade justa precisa preservar o elo entre liberdade e responsabilidade. Quando o Estado garante o sustento de quem voluntariamente se omite, cria uma cultura da dependência, que mina tanto a economia quanto a moral pública. O resultado é uma sociedade onde o esforço se torna irrelevante, a meritocracia perde sentido e a preguiça é institucionalizada sob o nome de “direito social”.


A tradição conservadora e cristã não nega a importância da solidariedade institucional.Mas ela deve ser ordenada por princípios morais, e não por impulsos ideológicos.A justiça exige que se proteja o vulnerável, mas também que se repreenda o voluntariamente ocioso. A misericórdia não se opõe à responsabilidade — ela a aperfeiçoa.


O caminho ético, portanto, é duplo:

  1. Socorrer o necessitado verdadeiro, que sofre por circunstâncias alheias à sua vontade.

  2. Restaurar o sentido do dever, lembrando que o trabalho é parte da vocação humana.


Assim, a assistência social deixa de ser um fim em si mesma e volta a ser um meio de reintegração moral e social.


A sociedade justa é aquela que combina compaixão com rigor moral. Não é justo que o trabalhador honesto sustente aquele que recusa o esforço por escolha. O amparo deve curar, não perpetuar a ferida. Trabalhar é mais do que um meio de vida — é um ato de amor pela ordem, um sacrifício pela comunidade e uma participação no desígnio divino. A verdadeira caridade não é a que consola a preguiça, mas a que reacende o dever.

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