Até Onde Vai a Autonomia do Paciente?
- Dr. Rafael Alvarenga

- 10 de nov.
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A autonomia do paciente é, sem dúvida, um dos pilares centrais da bioética moderna. Seu reconhecimento jurídico repousa sobre fundamentos constitucionais, especialmente o direito à dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição Federal) e o direito à liberdade individual (art. 5º, II). No entanto, como todo direito fundamental, a autonomia não é absoluta: ela encontra limites na convivência em sociedade, na proteção da própria vida e no dever ético e jurídico do profissional de saúde de cuidar — mesmo quando o paciente insiste em não se cuidar.

Doenças crônicas como hipertensão arterial e diabetes mellitus exigem cuidados contínuos. Médicos se deparam com pacientes que, por múltiplos fatores — desinformação, negação, negligência, resistência psicológica ou barreiras culturais —, recusam-se a aderir ao tratamento prescrito. Na prática, isso gera situações tensas: o paciente deseja "ser respeitado", mas simultaneamente recusa práticas básicas de cuidado, como uso de medicamentos ou mudanças no estilo de vida.
Sob a ótica do Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 2.217/2018), o médico não pode ser conivente com a omissão de cuidado. O artigo 31 do código estabelece que é vedado ao médico "deixar de atender paciente em caso de urgência e emergência quando não houver outro médico ou serviço médico responsável". Ainda que não haja urgência, há o dever de informar, insistir, registrar a orientação e, quando possível, envolver família e equipe multiprofissional.
A autonomia, no pensamento bioético, é um valor a ser respeitado, mas não idolatrado. A obra Principles of Biomedical Ethics, de Beauchamp e Childress, ainda hoje base fundamental, define a autonomia como a capacidade de deliberar sobre objetivos pessoais e agir segundo tais deliberações. Mas adverte: ela deve ser exercida de forma informada, racional e livre de coerção ou incapacidade cognitiva.
O paciente que se recusa a tomar medicamentos essenciais com pleno conhecimento das consequências pode estar agindo autonomamente — mas isso não exclui o médico da responsabilidade de tentar proteger a vida e o bem-estar desse paciente. Um desafio prático e filosófico.

Na esfera jurídica, o Código Civil Brasileiro (art. 15) prevê que ninguém pode ser constrangido a submeter-se a tratamento médico, salvo em casos de risco para terceiros. Entretanto, no âmbito do SUS, a Portaria GM/MS nº 2.436/2017 (Política Nacional de Atenção Básica) determina que a atenção deve ser contínua, integral e proativa, buscando estratégias de vínculo e adesão terapêutica.
Na esfera penal e cível, o profissional de saúde pode ser responsabilizado se deixar de agir diante de uma recusa que claramente expõe o paciente a risco iminente — especialmente se for incapaz, idoso vulnerável, ou se houver consequências previsíveis e evitáveis, como amputações ou AVCs por falta de controle pressórico.
Além disso, a Lei 10.216/2001, conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica, abre espaço para intervenção mesmo sem o consentimento, em casos de incapacidade temporária. A jurisprudência brasileira admite a possibilidade de internação involuntária ou tratamento compulsório mediante respaldo médico e judicial.
A exigência de consentimento informado não é mera formalidade: é um processo contínuo de diálogo. O paciente tem o direito de recusar, mas o profissional tem o dever de insistir, explicar e alertar. Em casos-limite, especialmente quando há risco de morte ou de incapacidade, pode-se lançar mão de intervenções protetivas, sempre com respaldo da legislação e da ética.
O Princípio da Beneficência, outro pilar da bioética, justifica que o profissional atue para prevenir danos — mesmo quando isso implica relativizar a autonomia. No limite, o princípio da não-maleficência impede o profissional de se omitir diante de um descuido deliberado com a própria vida.
O dilema entre respeitar a autonomia e cumprir o dever de proteger a saúde do paciente é um campo sensível, em constante evolução. A ética não é um escudo para abandono. O direito à liberdade não autoriza a negligência consigo mesmo. Em uma sociedade onde o acesso ao conhecimento e à assistência existe, recusar cuidados sem base racional e persistente pode não ser um exercício de liberdade, mas um grito por ajuda.








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