Transtorno Mental e Cidadania
- Dr. Rafael Alvarenga

- 29 de set.
- 3 min de leitura
A pergunta sobre quem é — ou não — cidadão atravessa séculos de filosofia e política. Não se trata de um detalhe jurídico, mas de um dos fundamentos da ordem social: definir quem participa da comunidade política, quem é sujeito de deveres e de direitos.

Desde Aristóteles, a cidadania não se resume ao fato de habitar um território, mas à capacidade de participar da vida da polis. Em sua obra Política, o filósofo definia cidadão como aquele que delibera e julga, que toma parte na constituição (ARISTÓTELES. Política. Trad. Mário da Gama Kury. Brasília: Editora UnB, 1988, Livro III, 1275). A cidadania exige, portanto, uma forma de razão prática, uma capacidade de discernimento.
Ora, surge então a questão: e o louco? Aquele cuja razão se encontra perturbada, merece também ser chamado cidadão?
O conservadorismo político sempre tratou essa questão com sobriedade. Edmund Burke, em suas reflexões sobre a Revolução Francesa, lembrava que a sociedade é um contrato entre os vivos, os mortos e os que ainda nascerão. Para ele, “a sociedade é, de fato, um contrato… não apenas entre os que estão vivos, mas entre os mortos, os vivos e os que ainda hão de nascer” (BURKE, Edmund. Reflexões sobre a Revolução em França. Trad. Bruno Garschagen. São Paulo: É Realizações, 2014, p. 109). Cidadão é quem pode assumir esse pacto e transmitir uma herança moral. Não basta existir biologicamente: é preciso estar inserido na corrente da civilização.
No Brasil, Oliveira Vianna interpretou nossa formação política a partir da tensão entre o “Brasil real” e o “Brasil legal”. Em Instituições Políticas Brasileiras, ele mostra como a cidadania não é simplesmente um dado jurídico, mas uma lenta construção histórica, condicionada por costumes e tradições sociais (VIANNA, Francisco José de Oliveira. Instituições Políticas Brasileiras. Brasília: Senado Federal, 1999 [1ª ed. 1938], v. 1, especialmente o cap. II). Sua análise aponta que a cidadania se realiza quando há integração entre indivíduos e a ordem histórica de um povo. O indivíduo se torna cidadão à medida que é capaz de integrar-se às tradições e responsabilidades de seu povo.
Mas isso nos leva ao ponto delicado: se a cidadania exige razão, o louco — na acepção clínica — estaria excluído? Para pensadores como Roger Scruton, a resposta não pode ser tão mecânica.
Scruton, em As vantagens do pessimismo, lembra que o pertencimento a uma comunidade política é também uma experiência moral e simbólica, que transcende a racionalidade individual (SCRUTON, Roger. As vantagens do pessimismo e o perigo da falsa esperança. Trad. Pedro Sette-Câmara. Rio de Janeiro: Record, 2011, p. 57-59). A loucura pode afastar o sujeito de responsabilidades imediatas, mas não o elimina como membro da comunidade moral. Ele continua pertencendo ao corpo político, mesmo que sua voz precise ser representada por outros.
Cidadania não é apenas autonomia individual; é também reconhecimento mútuo. Por isso, negar cidadania a pessoa com transtorno mental seria dissolver a própria ideia de humanidade compartilhada. É verdade que, em certos aspectos práticos — como a imputabilidade penal — o paciente não pode ser tratado como plenamente responsável. Mas, sob a perspectiva conservadora, isso não o destitui de sua condição de pertencente à comunidade política.

O que define a cidadania, em última instância, não é apenas a racionalidade plena, mas o vínculo indissolúvel com a nação, a história e a lei. Nesse sentido, mesmo o louco é cidadão, porque ainda é parte de uma família, de um povo, de uma ordem que o precede. O que lhe falta em razão própria é compensado pela razão comunitária que o acolhe.
Assim, a filosofia conservadora nos ensina a não cair em dois extremos: nem dissolver a cidadania em puro direito formal — como se bastasse existir para ser cidadão —, nem reduzir a cidadania à pura capacidade racional — como se bastasse raciocinar para ser digno de direitos. A cidadania é uma pertença civilizatória, fundada em deveres, costumes e tradições.
E dentro desse quadro, o louco é cidadão não porque decide, mas porque pertence; não porque delibera, mas porque é parte de um corpo maior que o sustenta.








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