Pode o médico recusar atendimento?
- Dr. Rafael Alvarenga

- 13 de ago.
- 3 min de leitura
Recusar atendimento médico é um tema que desperta debates entre juristas, médicos e conselhos profissionais. A dúvida, embora antiga, voltou com força em casos inusitados — como o de pacientes que, emocionalmente ligados a bonecos hiper-realistas conhecidos como bebês reborn, procuram pediatras como se fossem seus filhos. Outro exemplo são as consultas ginecológicas solicitadas por pessoas trans que nasceram biologicamente do sexo masculino, mas se identificam com o gênero feminino. Como deve agir o médico nesses casos? A recusa é legítima? Onde estão os limites éticos e legais?

O que diz o Código de Ética Médica?
A resposta exige análise cuidadosa do Código de Ética Médica (CEM). De início, o art. 1º, §2º da Resolução CFM nº 2.217/2018 afirma que o médico tem autonomia para aceitar ou recusar atendimentos, exceto em casos de ausência de outro profissional, urgência ou emergência, ou quando a recusa causar prejuízo à saúde do paciente.
Portanto, quando uma pessoa tenta estabelecer vínculo terapêutico com um boneco — por mais real que pareça seu afeto — não há corpo biológico nem urgência envolvida. Não há, portanto, uma relação médico-paciente válida a justificar obrigação ética. A recusa nesse contexto é legítima.
No entanto, recusar atendimento não pode se basear em discriminação ou preconceito. O art. 31 do CEM veda o desrespeito à autonomia do paciente sobre práticas diagnósticas ou terapêuticas — mas essa autonomia se refere a pessoas reais, não se estende a ficções ou objetos.
E no caso do atendimento a pessoas trans?
A discussão se aprofunda ao tratar de demandas ginecológicas de pessoas trans que não possuem útero ou vagina. Pode o ginecologista recusar?
O art. 36, §1º do CEM esclarece que o médico pode renunciar ao atendimento quando houver prejuízo ao bom relacionamento com o paciente ou quando sua atuação estiver comprometida tecnicamente, desde que:
comunique previamente o paciente ou seu representante;
assegure a continuidade do cuidado;
forneça as informações necessárias ao profissional sucessor.
Já o art. 104 do CEM é taxativo: o médico não deve assumir procedimentos para os quais não tem qualificação. Assim, se o profissional atua especificamente em ginecologia voltada ao sistema reprodutor feminino, ele pode alegar falta de capacitação técnica para atender pacientes sem tais estruturas anatômicas.
A recusa, nesse caso, deve ser respeitosa, fundamentada e comunicada. Ética, portanto, não é prestar todo e qualquer atendimento — é também reconhecer os próprios limites técnicos.

O que diz a Constituição e o Direito Civil?
Sob a ótica jurídica, a Constituição Federal (art. 5º, II) consagra o princípio da legalidade: "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei." Isso reforça o direito do médico de atuar conforme sua formação e consciência profissional.
O Código Civil (arts. 421 e seguintes) e o Código de Defesa do Consumidor (art. 6º, III e IV) exigem boa-fé, clareza nas informações e respeito à vulnerabilidade do paciente. Mas a recusa fundamentada e isenta de humilhação ou preconceito é juridicamente válida — especialmente quando respaldada em aspectos técnicos.
A Lei do Ato Médico (Lei nº 12.842/2013), no art. 1º, §2º, lembra que a atuação médica deve coexistir com outras áreas da saúde, mas cada profissional responde apenas pelos atos dentro de sua habilitação legal.
E a Portaria do Ministério da Saúde?
A discussão ganhou novos contornos com a Portaria SAES/MS nº 1.693/2024, da Secretaria de Atenção Especializada à Saúde. Ela ampliou os procedimentos voltados à população LGBTQIA+, prevendo inclusive procedimentos ginecológicos para pessoas trans, independentemente da presença de útero — desde que compatíveis com sua anatomia e quadro clínico.
A norma busca garantir acesso equitativo ao SUS, mas não obriga cada médico individualmente a realizar tais atendimentos. A portaria não revoga os dispositivos éticos nem a autonomia técnica individual, como garantem os arts. 104, 1º, §2º e 36, §1º do Código de Ética Médica.
Então, sim: O médico pode recusar atendimento em diferentes contextos, desde que:
haja ausência de vínculo clínico legítimo (como no caso do bebê reborn),
exista falta de capacitação técnica adequada (como ginecologistas diante de anatomias com as quais não foram treinados),
ou ocorra quebra da relação terapêutica.
Essa recusa deve sempre ser:
ética, justificada, registrada em prontuário, e seguida de encaminhamento responsável.








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